A reflexão que se segue parte de uma realidade
político-económica nacional para chegar a um caso que a marcha atlética vive
actualmente em Portugal.
No que diz respeito à organização da sociedade, o
espectro político português divide-se quanto ao papel que o Estado deve
desempenhar na economia. Para uns, o Estado deve limitar-se ao papel de
regulador da iniciativa privada; para outros, o Estado deve ter um papel
central, assumindo o controlo dos sectores mais importantes da economia.
Estes últimos têm, nos últimos anos, argumentado que o
sector económico do Estado tem sido objecto de enfraquecimento premeditado,
para que os defensores do predomínio empresarial possam afirmar que o Estado é
incapaz de gerir as suas empresas, justificando-se por isso a sua privatização.
Segundo esses, fica, assim, aberto caminho à transferência para a exploração
privada de grande parte do que tem sido de propriedade pública. Não cabe no
espaço do blogue «O Marchador» o aprofundamento da reflexão sobre o tema da
propriedade e da exploração dos meios económicos, mas esta formulação sugere
uma analogia com o que nos últimos tempos tem ocorrido com a questão dos 50 km
marcha e com a discussão à volta da manutenção ou da extinção dos respectivos
campeonatos nacionais.
A Federação Portuguesa de Atletismo (FPA) decidiu em 2014
que iriam acabar os campeonatos nacionais da distância mais longa do programa
olímpico do atletismo (50 km marcha), não os contemplando no calendário de
2015. Logo a decisão teve resposta dos marchadores: atletas (no activo ou não),
treinadores, dirigentes, juízes, familiares, amigos – todos a uma só voz
fizeram ver a irrazoabilidade da decisão da FPA, que não teve alternativa e
tratou de voltar atrás, repondo no calendário um evento que para lá entrou há
30 anos.
Mas, ao decidir manter o campeonato nacional de 50 km
marcha, a federação não diligenciou no sentido de promover a prova, optando por
escondê-la (isto é, não a publicitando), parecendo empenhada em garantir que
não tivesse sucesso. Acabaria por ter à partida seis concorrentes, quatro dos
quais não a concluíram. Foi quanto bastou para que se reforçasse aquilo que
alguns, pouco ou nada empenhados no desenvolvimento da marcha atlética no país,
afirmam ser a falta de interesse ou de qualidade para que se mantenham os
campeonatos nacionais dos 50 km.
Neste processo terá tido papel de relevo (ou pelo menos
responsabilidade inegável, fosse pela acção ou pela omissão) o
treinador nacional de marcha, a única pessoa da estrutura federativa com
responsabilidades específicas sobre esta disciplina olímpica do atletismo. Tem
sido um dos defensores da ideia de que os campeonatos de 50 km são muito
exigentes do ponto de vista organizativo (curiosa questão, que parece remeter
mais para a preguiça do que para o verdadeiro empenho na missão), pelo que
devem deixar de existir por escassez de interessados e falta de qualidade dos
resultados.
Segundo constou nos últimos meses e não parece negado
(antes pelo contrário, cada vez se confirma mais), o clube criado pelo
treinador nacional de marcha vai agora organizar uma prova de 50 km. Não consta
que vá candidatá-la a campeonato nacional, assim como não se sabe quando ou
onde vá ter lugar. Mas há ecos de que a ideia é mesmo ir em frente.
Aqui chegados e perante a estranheza que já se instala no
sector em relação a esta questão, cabe fazer algumas perguntas, para as quais
seria interessante ter resposta.
Como compreender que o treinador nacional de marcha tenha
sido um dos defensores da extinção dos campeonatos nacionais de 50 km marcha
quando o seu papel deveria ser o de fortalecer a disciplina?
Por que razão o treinador nacional de marcha aparece
agora ligado à criação de uma prova de uma distância cujos especialistas
ignorou durante os anos que já leva no cargo federativo?
Com que objectivo avança para a realização de uma prova
de 50 km organizada pelo clube que fundou enquanto treinador nacional de
marcha, depois de nada ter feito para defender o campeonato nacional da
distância, como seria seu dever?
Como compreender que uma prova de 50 km seja de difícil
organização enquanto campeonato federativo mas já não o seja enquanto prova
particular?
Quais os interesses por trás desta opção?
O que vai a direcção da FPA fazer em relação a este
assunto, que assume traços de escândalo como nunca antes sucedeu na marcha
atlética em Portugal?
É aqui que entra a tal analogia com a realidade
político-económica: destrói-se um bem comum para lhe dar depois um
benefício particular.
A única coisa que se espera e deseja é que a FPA
tenha mão nesta miséria.