domingo, 28 de junho de 2020

Brundage, a marcha e as dores de parto

Avery Brundage. Foto do busto: Asian Art Museum
Montagem: O Marchador
Os defensores de causas empenham-se com frequência na luta por ideais a partir de casos concretos em que os seus princípios são postos em causa. É uma dessas situações que está a ser vivida nos Estados Unidos, daí irradiando para cidades em vários países a propósito da morte de George Floyd, em Mineápolis. A onda de indignação contra o assassínio de Floyd por agentes da polícia daquela cidade ganhou expressão mundial e esteve na origem de acções de protesto contra o racismo que incluíram manifestações de rua, declarações nas redes sociais e deliberações institucionais.

Uma das repercussões da onda de protestos foi a decisão tomada pelo Museu de Arte Oriental de São Francisco (EUA) de retirar o busto do patrono do museu, Avery Brundage, do átrio de entrada no edifício. Brundage, que presidiu o Comité Olímpico Internacional (COI) durante 20 anos a partir de 1952, era um industrial abastado de Chicago, reconhecido também pela faceta de coleccionador de arte oriental. A colecção que reuniu era composta por mais de seis mil peças, que acabaram doadas à cidade de São Francisco para criação de um museu temático.

Mas Avery Brundage tinha sido também um praticante de desporto, dedicado sobretudo ao atletismo, tendo participado nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912, nas competições de pentatlo e decatlo.

O interesse de Brundage pelas provas combinadas manteve-se por vários anos, tendo sido campeão nacional dos EUA de «all-round» em 1914, 1916 e 1918. A composição do «all-round» quase se confundia com a do decatlo, mas na verdade tinha algumas diferenças: as dez provas era disputadas de seguida num único dia, com intervalos de cinco minutos entre cada uma, e o programa incluía, por exemplo, concurso de martelão e uma prova de marcha de meia milha (aproximadamente 805 metros). Tão difícil era esta competição (sobretudo para os atletas mais jovens) que a federação de atletismo dos Estados Unidos decidiu reconfigurá-la para o conjunto de provas que na actualidade compõem o decatlo.

A propósito dos desempenhos de Avery Brundage nas provas de marcha daqueles «decatlos» em que participou, vale a pena recordar o que terá afirmado em dada ocasião: «A marcha é o mais próximo que um homem pode experimentar em relação às dores de parto.»

A declaração seria, certamente, um exagero que para ser compreendido obrigaria a conhecer o contexto em que foi produzida, mas esta não deixa de ser uma afirmação clara da impressão que a marcha atlética causava no homem que liderou os destinos dos atletas dos Estados Unidos enquanto presidente da federação de atletismo e do comité olímpico dos EUA durante um quarto de século (além dos 20 anos, depois, a dirigir o COI).

Personalidade controversa, Avery Brundage morreu na Alemanha em 1975, deixando a memória de simpatias pelo nazismo, de convicções anti-semitas e de atitudes racistas. Foi por sua decisão (mas não actuando sozinho) que Tommie Smith e John Carlos foram expulsos da Aldeia Olímpica dos Jogos do México de 1968 e da missão olímpica dos EUA após a manifestação de solidariedade com o Black Power que protagonizaram durante a cerimónia protocolar dos 200 metros (atletismo).

As dúvidas sobre a nobreza das convicções políticas de Avery Brundage têm agora nova expressão com a decisão tomada pela direção do museu de São Francisco.