Imagens: WA, IOC e Freepik. Montagem: O Marchador |
Na língua portuguesa, o verbo «errar», com origem no latim, tem dois significados principais. Por um lado, refere-se a engano e remete para a ideia de falhar, cometer lapsos; por outro lado, tem o sentido de vaguear, caminhar sem rumo. A partir de errar foi construído outro verbo, aberrar, composto pela junção do prefixo latino «ab» ao já referido «errar». O verbo aberrar tem significado no campo semântico da astronomia e refere-se aos astros que, por alguma razão, se afastam do caminho normal, tomando uma via diferente da habitual, normal. Por extensão, aberrar refere-se a todas as situações em que alguém ou alguma coisa se torna diferente do padrão, assumindo características diferentes. Por exemplo, perante um quadrúpede que tenha nascido com apenas três patas, estamos na presença de uma aberração (palavra derivada de aberrar). Em sentido literal, a aberração é de carácter físico, mas em sentido metafórico pode ser aplicada no domínio imaterial, caracterizando ideias, atitudes ou comportamentos.
Esta introdução parece nada ter que ver com os assuntos de que o blogue O Marchador habitualmente trata (relacionados com a marcha atlética), mas, como se verá, pode ajudar a caracterizar o que vai descrever-se de seguida.
Recentemente, a World Athletics (designação adoptada há poucos anos para identificar a anteriormente chamada Federação Internacional de Atletismo Amador, depois renomeada Associação Internacional de Federações de Atletismo, em ambos os casos IAAF na sigla em inglês, e que continua a não ser possível traduzir para português sem adoptar soluções linguísticas... aberrantes - mas ainda não era para aqui que queríamos chamar este conceito) e o Comité Olímpico Internacional chegaram a acordo para a adopção da prova que haveria de substituir os 50 km marcha no programa dos Jogos da Olimpíada (ou Jogos Olímpicos de Verão, como são mais comummente conhecidos).
Com a excepção dos Jogos de Montreal, em 1976 (apenas com 20 km marcha masculinos), todas as edições dos Jogos Olímpicos de Verão desde 1932 (Los Angeles) tiveram no programa do atletismo as provas masculinas de 50 km marcha, a que se juntaram as de 20 km em Melbourne-1956 (antes houvera outras distâncias mais curtas), distâncias que se fixaram como padrão internacional, assumindo-se como referência para as restantes grandes competições internacionais e para os campeonatos nacionais da generalidade dos países onde a marcha atlética se implantou.
Mais recentemente, na última década do século XX, esse programa foi enriquecido com a integração de provas femininas de marcha, inicialmente apenas os 10 km (Barcelona-1992 e Atlanta-1996) e, depois (a partir de Sydney-2000), os 20 km em substituição dos 10 km. Para que fosse consagrada a equiparação de distâncias entre masculinos e femininos, faltou apenas a inclusão dos 50 km para mulheres, o que, apesar de não ter sucedido nos Jogos Olímpicos, aconteceu, por exemplo, nos programas dos campeonatos do mundo de atletismo (Londres-2017) ou dos campeonatos da Europa de atletismo (Berlim-2018).
Neste contexto, que é também marcado pelo empenho do Comité Olímpico Internacional na promoção da igualdade entre homens e mulheres, impunha-se que o programa olímpico do atletismo adoptasse uma solução igualitária para os dois sexos, oferecendo a possibilidade de igual número de atletas de cada sexo disputarem igual número de provas (provas tendencialmente iguais na configuração, ainda que mantendo, por exemplo, a diferença de massa e de dimensões dos engenhos dos lançamentos). Assim, no que se refere à marcha atlética, a World Athletics, enquanto gestora do atletismo nos Jogos Olímpicos, precisava de encontrar solução para a diferença entre as provas dos atletas masculinos (20 e 50 km) e as dos femininos (apenas 20 km). No entanto, o COI estabelecia uma condição: em respeito pelos princípios de sustentabilidade advogados pelo Movimento Olímpico, não poderia haver aumento do número de provas. Portanto, não poderia adoptar-se a solução mais previsível, que seria simplesmente juntar uma prova de 50 km femininos ao programa da modalidade (como acontecera nos já referidos exemplos dos campeonatos mundiais e dos campeonatos europeus).
E é aqui que o problema começa. Depois de uma fase em que ainda houve esperança numa solução normal de simples acrescento dos 50 km femininos, começou a tornar-se evidente que essa solução era inviável, fosse pela determinação do COI pelo não alargamento do programa olímpico (ou seja, não aumentar o número de provas), fosse pela incapacidade da World Athletics de fazer prevalecer a bondade desse acrescento. De resto, a World Athletics, presidida por um destacado membro do COI (Sebastian Coe) com evidentes e nunca desmentidas aspirações à liderança dessa entidade criada por Pierre de Coubertin em 1894, sempre se mostrou pouco determinada na defesa de uma lógica que todos os agentes desportivos de base parecia compreenderem e aceitarem mas que as estruturas dirigentes de topo recusavam com base em obstinações com princípios «de moda». Foi assim que a World Athletics (e não só) começou a adoptar soluções de aparente espírito inovador, mas que, na verdade, navegavam muito entre o imaginativo e o delirante – veja-se (sempre sem sair do atletismo) os exemplos das estafetas mistas ou de certas normas regulamentares (como a da prevalência da marca do último ensaio em concursos onde os atletas com melhor marca podiam não ser os vencedores), em que mais parecia estar-se a brincar com o esforço dos atletas e a sujeitá-los ao ridículo do que a valorizar-lhes o esforço e a qualidade dos desempenhos competitivos.
Aqui chegados, vamos então ver qual foi a solução que este par WA / COI adoptou para garantir a tal igualdade para masculinos e femininos no programa olímpico do atletismo a partir de Paris-2024, especificamente no respeitante à questão dos 50 km marcha: para não ter de acrescentar uma prova feminina, optou por pura e simplesmente eliminar essa distância (dos masculinos), substituindo-a por uma prova mista (homens e mulheres na mesma prova, competindo entre si), em formato de estafeta, com a distância igual à das corridas de maratona. Ao que consta mas ainda sem confirmação, os dois atletas de cada equipa farão percursos alternados de distância igual a uma quarta parte do total da maratona (ou seja, 42.195 metros a dividir por 4, o que deve dar pela primeira vez na história das provas de atletismo uma distância marcada até aos centímetros).
Ora, é aqui que entramos no domínio da tal aberração de que se falou no início. Ao inventar-se uma prova com aquelas características criou-se uma aberração, uma fuga evidente à normalidade. Trata-se, por isso, de uma decisão anormal, que só pode ter sido tomada por pessoas caracterizadas por um conceito globalizado pela língua inglesa através do termo «freak»: isto só pode ser obra de «freaks», de anormais (pessoas que estão fora do padrão), de desnorteados (pessoas que perderam o norte e estão desorientadas, sem rumo evidente).
Vejamos:
. a marcha atlética nunca teve qualquer tradição (local, regional, nacional, continental ou mundial) de competições por estafetas (e muito menos de estafetas em que cada atleta fizesse mais do que um percurso na mesma prova, apesar de em Portugal serem conhecidos dois ou três casos de provas «informais» desse tipo em quase 50 anos de marcha atlética);
. a marcha atlética nunca teve qualquer tradição (local, regional, nacional, continental ou mundial) de competições em provas mistas – em muitas circunstâncias, há classificações colectivas com base em resultados individuais de provas masculinas e femininas, mas nunca de provas em que homens e mulheres competem juntos;
. a marcha atlética nunca teve qualquer tradição (local, regional, nacional, continental ou mundial) de competições na distância equivalente à das corridas de maratona (muito menos na distância que parece que cada interveniente vai fazer e que, segundo consta, será qualquer coisa incerta à volta dos dez quilómetros e meio);
. depois de no início da década de 90 se ter acabado (através de decisões globalmente aceites e compreendidas) com as distâncias curtas da marcha nas grandes competições internacionais de pista coberta (3000 m femininos e 5000 m masculinos), a opção por voltar a reduzir distâncias (neste caso para provas não tão curtas, mas mesmo assim muito menores do que as que vigoraram durante quase um século) funciona ao arrepio das melhores práticas em matéria organizativa, com o risco evidente de regresso ou aprofundamento de problemas técnico-regulamentares e do consequente descrédito da marcha enquanto disciplina do atletismo (aliás, até parece que esse é o objectivo de quem toma decisões como esta);
. a prova agora inventada surge criada e imposta a partir de cima, sem considerar nem muito menos respeitar a opinião dos principais interessados (os atletas), que não foram tidos nem achados no processo que conduziu a esta decisão – como se tem visto nas opiniões divulgadas nos órgãos de informação e nas redes sociais, parece não haver ninguém a manifestar-se de acordo com esta coisa estranha da tal estafeta, que, a menos de ano e meio dos Jogos de Paris, ainda ninguém percebeu como vai funcionar, tanto na fase de apuramento (mínimos?) como na da concretização «em pista».
Se, apesar de tudo isto, ainda mantivermos alguma boa-disposição e estivermos disponíveis para uma conclusão irónica, então aqui vai: esta ideia tem de ser considerada genial e a respectiva patente deveria ser registada de imediato, tal é a qualidade da invenção!
Agora, perante o erro que se cometeu, impõe-se uma atitude sábia: enterrar a aberrante decisão no cemitério do lixo da World Athletics e do Comité Olímpico Internacional e optar por solução que atenda em primeiro lugar aos atletas e não a objectivos obscuros e inconfessados.
Nem uma visão pós-modernista consegue explicar o que a World Athletics e o COI fizeram.