terça-feira, 4 de novembro de 2014

Calendário FPA aniquila os 50 km marcha

Partida para os 50 km dos nacionais de Viseu em 2001: uma
imagem que a FPA parece não querer que se repita.
Foto: arquivo O Marchador
Quem visitar o «site» da Federação Portuguesa de Atletismo e ler a notícia que aí foi publicada esta segunda-feira sobre o calendário de competições para 2014-2015 fica com a ideia de que houve umas pequenas trocas de nomes de provas (as Taças FPA passam a Taças de Portugal) e mais algumas substituições de competições (o fim do campeonato nacional de 50 km, por exemplo, como se fosse coisa pouca). Mas quem puder fazer uma leitura com visão histórica percebe que este é um ataque sem vergonha à marcha atlética portuguesa.

A notícia é, então, essa: a FPA decidiu passar a organizar os Campeonatos Nacionais de Marcha em Estrada a par do Grande Prémio Internacional de Rio Maior em Marcha Atlética (em 2015 será a 18 de Abril), mas não incluindo o campeonato de 50 km, que dá lugar a uma prova de 35 km a realizar dois meses e meio antes (31 de Janeiro), em local ainda não anunciado e sem estatuto de campeonato (não terá atribuição de título de campeão).

Esta é uma decisão de uma audácia irresponsável, temerária no pior sentido que o conceito permite. Antes de mais, transferir o campeonato nacional de marcha para o programa do grande prémio de Rio Maior é, em termos simples, acabar com um dos dois grandes momentos da marcha de competição em Portugal. Durante mais de trinta anos, esses campeonatos têm sido o momento alto de cada época da especialidade no nosso país. Desde 1991, Rio Maior tem no grande prémio internacional de marcha outro grande momento de divulgação e de motivação dos marchadores portugueses (e não só dos portugueses). Com o novo calendário, a FPA mata uma das galinhas: os momentos altos passam de dois a... apenas um.

No início de 2014, a impensável decisão de alterar à última hora os «normais» critérios de selecção para a Taça do Mundo Marcha de Taicang constituiu uma primeira facada nos especialistas de 50 km. Resultado: nem equipa houve para levar à China em representação de Portugal na prova daquela distância.

Agora, em vez de emendar a mão e tentar recuperar para a distância os atletas que se afastaram por obra daquela decisão irresponsável ou, em alternativa, tentar criar uma nova linha com novos valores na distância, a FPA ensaia a fuga para a frente: os agentes do mal (talvez contentes) conformam-se com o mal que fizeram e optam por amputar ao corpo o membro doente (ou, melhor dizendo, o membro que se fez gangrenar por grave negligência, para depois já ter pretexto para cortá-lo).

Para estes factos não se vê outra explicação que não seja a manifesta incompetência para gerir a marcha e dar continuidade ao desenvolvimento que a disciplina experimentou desde a reintrodução em Portugal (há precisamente 40 anos) até há bem pouco tempo.

Na verdade, nunca se tinha chegado a este ponto, nem nos primórdios dos campeonatos de marcha, quando foi preciso enfrentar tantas dificuldades e tantas forças contrárias para manter os campeonatos. Só a determinação dos atletas da especialidade conseguiu assegurar a continuidade do evento ao longo dos anos iniciais, até à afirmação definitiva desse importante objectivo que foi a celebração regular dos campeonatos nacionais de marcha em estrada.

Com a realização dos campeonatos em associação com o grande prémio de Rio Maior (isto é, como mero apêndice de uma prova particular), o que acontece é que, na prática, perde-se os campeonatos. Ainda que as provas permitam a atribuição de títulos nos diferentes escalões a partir de juvenis, nada poderá substituir a dignidade de uns campeonatos de corpo inteiro, em vez de uns campeonatos realizados a meias com outro programa, diluídos no meio de um grande prémio, por muito respeitável que seja – e o de Rio Maior é-o, sem dúvida.

A decisão da FPA de acabar com o campeonato de 50 km tem ainda a nódoa de fazer daquela prova a única do programa olímpico do atletismo sem campeonato nacional. Os 50 km marcha servem para fazer parte do programa olímpico mas, pelos vistos, não merecem a consideração da parte da Federação Portuguesa de Atletismo.

Poderia perguntar-se: qual o projecto por trás desta decisão? Quem pensou neste assunto? A que grandes linhas programáticas obedeceu esta decisão? Não ocorre resposta nenhuma. Ocorrem, sim, outras perguntas: qual foi o papel do treinador nacional de marcha neste processo? Fez a proposta? Recebeu-a de terceiros e subscreveu-a? Pôs a chancela? Ou será que se limitou a servir de estafeta para entregar mensagem escrita por outros?

Uma coisa é certa: como verdadeiros executores da corda, empenhados em pendurar a marcha num qualquer cadafalso de beira de estrada, os responsáveis por esta medida (treinadores ou directores) ficarão com a vergonha do verdugo, que ganha a vida de cara escondida, para não ser reconhecido na rua pelo que faz.

Há 11 anos, em Cheboksary, o quarteto composto por Pedro Martins, Jorge Costa, Luís Gil e Mário Contreiras conquistou para Portugal, de forma brilhante, o terceiro lugar colectivo nos 50 km da Taça da Europa de Marcha. Em 2014, Portugal não conseguiu sequer reunir atletas para formar uma equipa, muito por incompetência de quem, na FPA, tinha a obrigação de zelar pela continuidade do sucesso desta disciplina olímpica do atletismo.

Cabe aos amantes da marcha (em particular, aos actuais e aos antigos atletas de 50 km) defender o património de um campeonato que alguém, mal intencionado, está a querer destruir, com todas as consequências que isso tem para o desporto e o atletismo portugueses.