O blogue «O Marchador» nasce no momento em que Portugal assinala o centenário da implantação da República, revolução triunfante em 5 de Outubro de 1910 e que constitui momento da maior importância nos quase novecentos anos de história do país.
Naquele início do século XX, o desporto português conhecia uma fase de significativo desenvolvimento, ainda que procurando apenas recuperar do mesmo atraso que caracterizava tantos outros sectores da vida nacional. Nos anos finais do século XIX e no início do século XX, Portugal conheceu o surgimento de importantes colectividades desportivas e o desenvolvimento de competições regulares, numa adesão crescente dos portugueses à actividade física.
É certo que, por esta altura, esses «portugueses» não incluíam muito mais do que alguns aristocratas, mas o processo de desenvolvimento desportivo sentiria forte impulso com a vitória dos republicanos em 1910, fortemente apoiados nas classes populares. A vinda do povo para a rua, em armas, foi decisiva para o triunfo dos revolucionários. E seria sobretudo nesse nível social que o desporto viria a crescer nas primeiras décadas do século XX, incluindo os primeiros anos da República.
A marcha atlética contou-se no role das modalidades desportivas adoptadas na prática de alguns dos novos entusiastas das competições ao ar livre. De 1912 data a primeira referência a provas de marcha integradas no programa dos Jogos Olímpicos Nacionais, que nesse ano conhecia a terceira edição. Os relatos mencionam a vitória de Djalma Bastos, do CIF, a quem sucedeu, nos dois anos seguintes, o colega de clube Sousa Flores, já com o torneio rebaptizado Jogos Desportivos Nacionais.
Mas a referência mais antiga a provas de marcha em Portugal apontava para 1907, ainda na monarquia, quando uma vintena de pedestrianistas mais ou menos aventureiros se abalançaram a ligar (em marcha) Lisboa a Sintra, com regresso. O percurso incluía passagens por Benfica, Porcalhota, Queluz, Cacém, Rio de Mouro e S. Pedro. Dessa prova, um nome ficou para a história: o de Vítor Guedes Júnior, primeiro classificado, que «chegou a Sintra em menos de quatro horas e fez o percurso de regresso em pouco mais de três», conforme se lia na imprensa da época. Guedes Júnior tornou-se, assim, o primeiro vencedor de provas de marcha conhecido no nosso país.
Não se sabe qual terá sido em rigor o percurso seguido pelos atletas nem se a prova decorreu sob a égide de alguma entidade habilitada para ajuizar o cumprimento de regras previamente estabelecidas. Mas sabe-se que, como notou o olisipógrafo Appio Sottomayor na coluna regular que durante anos manteve no vespertino «A Capital» (ver edição de 4 de Agosto de 1997): «Como não consta que na época houvesse 'doping' ou especiais estimulantes, mas, em contrapartida, se notabilizavam as localidades mencionadas pela existência de algumas locandas onde os líquidos tintos e brancos ascendiam a néctares, não será talvez demasiado ousado supor que alguns atletas se foram dessedentando pelo caminho.»
A prova pode não ter sido muito canónica, mas não deixa de ser uma importante referência para a história da marcha atlética em Portugal. E de constituir uma espécie de resposta ao «apelo» à prática desportiva, em geral, e da marcha, em particular, numa época em que o país fazia por tentar aproximar-se das melhores tradições internacionais.
A disciplina da marcha atlética tinha uma já longa tradição nas ilhas britânicas e em França, onde eram famosas as grandes caminhadas individuais, realizadas com fins de aventura em forma de aposta ou a título simplesmente diletante.
Essa era também a época em que a marcha surgia reconhecida internacionalmente como disciplina do atletismo em pé de igualdade com as restantes especialidades, como denota o facto de a marcha ter passado a fazer parte dos programas de competições como os Jogos Olímpicos, em Londres-1908 (não contando com a inclusão de uma prova de meia milha de marcha numa espécie de decatlo nos Jogos de 1904, em St. Louis). E assim faria o seu caminho mundo fora, até aos nossos dias, numa universalização crescente.
Por cá, a forma como a elite política tratou a República determinou-lhe o percurso e o destino que se conhece: das grandes esperanças de 1910 à ditadura de 1926, aquela foi uma I República que viveu na maior instabilidade governativa e social, com o povo cada vez mais consciente de que, afinal, voltava a ser esquecido.
Ainda que não possa falar-se com rigor em qualquer relação de causa-efeito, não pode deixar de constatar-se a coincidência entre esta perda de ilusões sociais e o desaparecimento da prática da marcha atlética em Portugal, pelo menos em contexto de competição.
A República fez um intervalo. A marcha atlética copiou o exemplo. E o programa seguiu «dentro de momentos». Em 1974.