quarta-feira, 19 de março de 2014

Marcha em Portugal na Primavera de 1938 (XI)

«É já no dia 27 de que o 'Século' promove a repetição da 'Prova de Marcha' do Grémio do Alto do Pina, que, por nossa sugestão, foi anulada por deficiências na fiscalização.» Assim começava a notícia-anúncio publicada pelo jornal «O Século» em relação à prova de marcha que iria ligar Vila Franca de Xira a Lisboa, não a 27 de Janeiro, como erradamente era indicado, mas a 29 de Janeiro de 1939, em substituição da competição organizada no Alto do Pina, em Lisboa, e efectuada em 18 de Dezembro de 1938.

A constatação de problemas de ajuizamento (ou «fiscalização», como mencionava a notícia) levara à procura de solução, que surgiu na forma de repetição da prova. Era uma demonstração de progresso da marcha em Portugal, dado que, detectado um defeito, logo se procurava corrigi-lo. E o problema ocorrido na prova do Alto do Pina era bastante sensível, por se relacionar com um aspecto decisivo da marcha que é o regulamento técnico específico, com a necessidade de cumpri-lo (atletas) e de fazê-lo cumprir (juízes).

No entanto, a solução encontrada não terá sido a mais feliz. Por um lado, fazer uma prova a ligar duas cidades com mais de 30 quilómetros a separá-las poderia não ser a melhor maneira de evitar problemas de «fiscalização», isto é, de ajuizamento (mesmo considerando que, na época, o conhecimento das regras da marcha e o desenvolvimento técnico dos atletas seria muito rudimentar). Por outro lado, a organização decidiu que, tratando-se de uma repetição (?!), cada equipa que tinha participado na prova do Alto do Pina deveria apresentar à partida em Vila Franca exactamente os mesmos atletas que tinham concorrido nessa prova de Dezembro, condição que teria poucas probabilidades de se concretizar e muitas probabilidades de criar novos problemas, dado que alguns concorrentes tinham entretanto mudado de emblema.

A 21 de Janeiro, oito dias antes da realização da prova, teve lugar na redacção do jornal patrocinador uma reunião de delegados dos clubes inscritos na qual foram tomadas algumas decisões: a partida seria dada em Vila Franca às 10h00; a meta ficaria instalada na Praça dos Restauradores, em Lisboa; os atletas que tinham participado na prova do Alto do Pina teriam de alinhar pelo mesmo clube ou como individuais (note-se que à época não existia o vínculo anual dos atletas aos clubes que representassem); os marchadores deveriam concentrar-se na estação do Rossio, em Lisboa (bem perto da meta), para seguirem de comboio para o local da partida; e ainda o itinerário da competição - Vila Franca de Xira, Alhandra, Alverca, Póvoa de Santa Iria, Sacavém, Av. Alferes Malheiro, Av. da República, Praça Duque de Saldanha, Av. Fontes Pereira de Melo, Praça Marquês de Pombal, Av. da Liberdade e Restauradores.

A interessante logística do transporte dos atletas e da bagagem era anunciada na edição de «O Século» da terça-feira anterior à prova e estabelecia: «O comboio parte da estação do Rossio às 7 horas e 31 minutos. Oportunamente indicaremos o dia e hora em que os bilhetes podem ser procurados no 'Século'. Com os números de pano serão entregues números em papel, que os concorrentes pregarão ao pacote dos fatos, que serão transportados para Lisboa, no camião do 'Século'. Contra entrega do número de pano que cada atleta traz no peito serão devolvidos os fatos. Convém que cada 'marchador' vá já equipado, levando, por cima, o fato, sem quaisquer valores nos bolsos.»

Com 158 atletas inscritos (ou 160, consoante as versões), entre individuais e representantes de 20 clubes, e o ajuizamento a ser assegurado por grupos de ciclistas e de motociclistas do Sporting, do Belenenses e de Vila Franca de Xira, a prova iniciou-se junto à estação de caminho-de-ferro, com o largo engalanado para o momento. Logo à saída da cidade de partida formou-se um grupo de liderança em que pontificavam Albertino Loureiro (Santoantoniense), Alberto Sousa (Benfica, mas individual para efeitos de classificação colectiva), Armando Matos (Alto do Pina), Armando Gonçalves (Sete Rios), Modesto Pisco (Sete Rios) e José da Silva (Sporting). Em Alhandra, os dois primeiros forçaram o andamento e isolaram-se no comando, juntando-se-lhes mais à frente o sportinguista.

Com uma hora e dez minutos de prova, Alberto Sousa passava já sozinho, em primeiro lugar, na Póvoa de Santa Iria, detendo então cerca de 300 metros de avanço. Mais perto de Sacavém, Modesto Pisco destacou-se do pelotão e iniciou a sua perseguição ao líder. À saída da povoação, os atletas voltavam a estar separados por 300 metros, seguindo mais atrás os santoantonienses Albertino Loureiro e João José da Silva. Mas pouco depois, na Charneca, o marchador do C.D. Sete Rios sofreria uma cãimbra e, enquanto era assistido, seria ultrapassado pelos dois atletas do Barreiro.

Atravessando Lisboa desde o Campo Grande até aos Restauradores, com milhares de pessoas a assistir à passagem dos atletas, a classificação dos primeiros não se alteraria, apenas se definindo entre os marchadores do Santoantoniense quem seria o segundo e o terceiro. A vitória, essa, não escapou a Alberto Sousa, que cumpriu os 37 quilómetros do trajecto em 3.09.30 h, com mais de cinco minutos de vantagem sobre o segundo, Albertino Loureiro (3.14.45). João José da Silva (3.15.52) chegava pouco depois e Modesto Pisco (3.19.29) segurava o quarto lugar. Até ao décimo posto, a classificação continuou da seguinte forma: 5.º, Guilherme Pires Duarte (Sporting), 3.20.40; 6.º, Valentim Cardoso (Santoantoniense), 3.21.40; 7.º, Ladislau Dias (Sporting), 3.21.52; 8.º, Augusto Silva (Santoantoniense), 3.25.07: 9.º, Elias da Fonseca (Santoantoniense), 3.25.24; 10.º, Armando Gonçalves (Sete Rios), 3.25.37.

Por equipas, o Santoantoniense triunfou com 28 pontos, contra 52 do Sporting C.P. e 60 do C.D. Sete Rios.

Mais uma vez com muitos prémios oferecidos por estabelecimentos comerciais para muitos atletas e clubes, vale a pena enumerar o que conquistou o vencedor individual (para além de prémios em «metas volantes»): uma medalha, uma camisa de popeline, uma dúzia de sabonetes «Lizette», seis caixas de pó de arroz e um pacote de «Pargil».

Desta vez, o desportivismo reinou e não surgiram dúvidas quanto à qualidade da marcha dos concorrentes. Ainda assim, apesar de estarem a afirmar-se alguns nomes entre os melhores marchadores participantes nas provas de marcha levadas a efeito em 1938 e princípio de 1939, o balão estava quase a rebentar.