Reportagem de «O Século» sobre a prova do Alto de Pina. Depois da confraternização vieram as dúvidas sobre as classificações. |
A prova de
marcha que em Coimbra iria ter lugar no dia de Natal de 1938 por iniciativa do Vitória
da Arregaça e que acabou por ser anulada constituiu uma espécie de queda na
realidade da marcha portuguesa da época. Depois de muitos anos em que a
modalidade tinha estado no esquecimento, aquele ano ficou marcado por uma
enorme quantidade de provas levadas a efeito em várias cidades do país (só em
Lisboa foram pelo menos seis). À luz do conhecimento de hoje, poderia dizer-se
que o número de provas realizadas traduzia um aumento desproporcionado de
oportunidades de competição, tendo em conta o conhecimento e a divulgação da
modalidade em Portugal. Interesse haveria, por certo, como se viu pela grande
adesão de participantes em algumas dessas provas, mas o domínio da técnica e
dos regulamentos seria certamente muito embrionário.
Não se
estranha, por isso que aquela prova de Coimbra tivesse ficado sem efeito. Como
também não se estranha o problema surgido na competição levada a cabo em
Lisboa, em 18 de Dezembro desse ano, por iniciativa do Grémio do Alto do Pina.
Desta vez, já não de tratava de um acontecimento patrocinado pelo trissemanário
desportivo «Os Sports», mas sim pelo diário «O Século».
Este jornal
começou a divulgar a iniciativa na edição de 5 de Dezembro, adiantando que «a
prova do Grémio do Alto do Pina vai ficar como a mais longa até hoje realizada,
pois vai ser disputada num percurso de 30 quilómetros». De seguida explicava
que se tratava de uma competição de dez voltas a um circuito de três quilómetros,
com partida e meta instaladas junto à sede do clube organizador, na Rua Barão
de Sabrosa, e seguindo um itinerário pela Rua Alves Torgo, Avenida Almirante
Reis, Praça do Chile e Rua Morais Soares.
Dois dias
antes da competição, o jornal fazia uma curiosa recomendação aos atletas
inscritos: «Os concorrentes devem comparecer equipados de calção, camisola,
alpergatas e quatro alfinetes de dama para os números.»
No dia da
prova compareceram mais de cem concorrentes, que enfrentaram não apenas as dificuldades
do percurso, marcado por grandes desníveis, mas também a intempérie, traduzida
na chuva que fustigou a cidade durante todo o dia. O primeiro na meta seria
Albertino Loureiro, do Santoantonense. O atleta do Barreiro comandou a prova
isolado de princípio a fim, ganhando todos os prémios atribuídos pelos
comerciantes locais ao líder em cada passagem na meta. Cumpriu a distância em
duas horas e 58 minutos, menos um minuto que o colega de equipa Augusto Silva,
enquanto José da Silva, do Sporting, terminava com 2.59.16 h. Por equipas
triunfava o Santoantonense F.C., seguido do Sporting Club de Portugal e do
Atlético Club do Terreirinho.
Enigmaticamente,
a notícia de «O Século» sobre a prova do Alto do Pina terminava dizendo: «Estas
classificações têm carácter provisório e devem ser confirmadas na reunião de
delegados que se realiza na quinta-feira, às 21 horas, na redacção do
'Século'.» Mas já se percebia a razão das dúvidas sobre as classificações,
resultantes do facto de numerosos atletas terem sido desclassificados, havendo
muitos outros que terminaram a prova mas sobre os quais recaíam acusações de
«terem corrido», a começar pelo vencedor, que os «fiscais» também tinham
querido desclassificar.
O desfecho
da reunião de delegados, que acabou remarcada para sexta-feira, deu origem a
que o jornal publicasse no dia seguinte uma notícia com um título esclarecedor:
«Por proposta do 'Século' foi anulada a 'Prova de Marcha' do Grémio do Alto do
Pina». O texto explicava depois que «foi acesa e prolongada a discussão; foram
muitas as faltas que os delegados mutuamente atribuíam aos concorrentes». Por
proposta de um representante do jornal, aprovada por unanimidade, a prova foi
anulada, sendo substituída por outra que logo ali ficou marcada para 29 de
Janeiro de 1939, ligando Vila Franca de Xira a Lisboa, num percurso em linha.
Era o golpe
de misericórdia numa prova problemática e a confirmação de que a marcha tinha
ainda um longo caminho a percorrer. A começar pelos aspectos regulamentares.
Como compensação registe-se que entretanto, a 13 de Novembro, tivera lugar
outra prova, ainda em Lisboa, também patrocinada por «O Século» e organizada
pelo Club Desportivo de Sete Rios. Teve a extensão de 27 quilómetros (duas
voltas de 13.500 metros) e saiu vencedor Modesto Pisco, do clube organizador,
tendo gasto 2.30.32 h. Nos lugares imediatos terminaram Ladislau Dias (Sporting
CP, 2.31.10) e Manuel Guerreiro (Secil FC, 2.31.57), enquanto o Sporting
ganhava por equipas.
Apesar de
ter havido 22 desclassificações «por abandono do passo de 'marcha'», desta vez
não constou que tivessem surgido dúvidas ou discordâncias sobre a
classificação. Ou, se as houve, o jornal não lhes deu eco, o que, especulando,
é o mais provável que tenha acontecido. Restava agora esperar para ver como
iria decorrer a prova de Vila Franca de Xira a Lisboa.