Montagem: O Marchador |
O Conselho da Associação Internacional de Federações de Atletismo
(AIFA, ou IAAF na sigla em inglês) divulgou este domingo (23 de Julho) ter
acrescentado ao programa dos Mundiais de Londres (4 a 13 de Agosto) uma prova
de 50 km marcha para o sector feminino, tornando estes campeonatos do mundo nos
primeiros a ter o mesmo número de provas para masculinos e para femininos
(24+24). A prova terá início simultâneo com os 50 km masculinos, sendo criada
uma classificação específica para as participantes femininas, a quem serão
atribuídos prémios monetários como nas restantes provas dos campeonatos.
Às atletas interessadas em participar foi indicado o dia 25 de Julho,
às 24h00 (hora do Mónaco) como limite para a obtenção de mínimos, estabelecidos
em 4.30.00 h. Para poderem terminar a prova nos mundiais de Londres, as
participantes terão de entrar na última volta de 2000 metros (ou seja, passar
aos 48 km) com um tempo de passagem não superior a 4.17.00 h. Se não o conseguirem,
serão afastadas da prova, mas não desclassificadas – isto é, ficam
classificadas sem marca final.
O Presidente da AIFA, Sebastian Coe, esclareceu que a decisão do
Conselho surge na sequência da participação de uma atleta dos Estados Unidos
(Erin Taylor-Talcott) na edição de 2016 dos Mundiais de Marcha por Selecções,
realizada em Roma. E acrescentou que a igualdade de prémios monetários entre
masculinos e femininos é uma realidade desde que este tipo de prémios foi
instituído, no início dos anos 90.
Sebastian Coe reconheceu que esta foi uma decisão de última hora,
explicando ter tido na base o pedido feito nesse sentido por um «pequeno grupo
de atletas». «Assim, para garantir uma credibilidade de longo prazo dos
Campeonatos do Mundo, iremos seguir a recomendação do Comité de Marcha e
avaliar a evolução desta prova para determinar se há suficiente número de
atletas e de países realmente interessados», acrescentou durante a conferência
de imprensa de domingo passado.
O presidente da AIFA parece ter tocado nas questões mais interessantes
deste assunto. Por um lado, a inclusão de uma prova de marcha de 50 km para
senhoras é mais um passo no sentido da igualdade de programa de provas para
masculinos e femininos, para já garantida no número de títulos a atribuir (24
em cada sector). Faltará equiparar, por exemplo, o número de eventos nas provas
combinadas (por enquanto, decatlo para masculinos e heptatlo para femininos), a
dimensão e a massa dos engenhos dos concursos de lançamentos (mais pequenos e
menos pesados no sector feminino) ou a altura das barreiras e a extensão da sua
prova mais curta (100 m barreiras para as mulheres, 110 m barreiras para os
homens).
Quanto aos prémios monetários, é claro que se há 48 classificações para
atribuição de outros tantos títulos de campeão, não poderia haver prémios em
apenas 47 provas. Portanto, é lógico que terá de haver prémios monetários para
os 50 km femininos de igual valor aos das restantes provas do programa. Mas é
de admitir que se questione a legitimidade de prémios iguais para uma prova que
não deverá ter à partida uma quantidade de concorrentes que justifique sequer
uma final com a tradicional dimensão de oito atletas. E resta saber se o número
de atletas na meta dos 50 km femininos vai permitir compor um pódio completo.
Mas esse já é um problema secundário, dado que pior seria não haver prémios de
todo.
Em todo o caso, a questão dos prémios monetários apresenta uma vertente
pouco menos que ridícula. É que, se as atletas que não cumprirem o limite de
tempo na passagem aos 48 quilómetros forem afastadas da prova mas não
desclassificadas, isso significa que permanecem na classificação, podendo assim
receber o prémio (e medalha, se classificadas num dos três primeiros lugares),
mesmo sem terem completado a distância da prova.
Outro assunto que também não se compreende muito bem é que a AIFA, a
entidade de cúpula do atletismo mundial, liderada por dirigentes profissionais
e com grande responsabilidade, tenha tomado esta decisão a pouco mais de uma
semana da abertura dos mundiais de Londres, onde ela produzirá efeito, e que o
tenha feito para corresponder ao pedido de «um pequeno grupo de atletas». Que
atletas foram esses (ou essas)? Têm interesse directo e pessoal no processo?
Será uma influência legítima aquela a que a AIFA aceitou submeter-se da parte
desses (ou dessas) atletas?
Como se tudo isso não fosse já suficiente «per se», acrescenta-se ainda
o pormenor de que as interessadas poderão obter mínimos até dois dias depois do
anúncio da decisão do Conselho da AIFA. Mas isso, em termos práticos, é o mesmo
que dizer que mais ninguém vai participar nos 50 km marcha femininos de
Londres-2017 para além das atletas que porventura já tivessem mínimos antes.
Depois de num momento inicial terem soprado de vários quadrantes manifestações
de regozijo pela decisão do Conselho da AIFA, logo proliferaram comentários
mais ponderados sobre a matéria. Sem dúvida, é positivo o surgimento de uma
prova de 50 km marcha para o sector feminino nos mundiais de atletismo, mas a
decisão e o respectivo anúncio teriam de acontecer em tempo útil, não a uma
semana e meia do início dos campeonatos.
É de prever que o número de participantes nos 50 km marcha femininos
nos mundiais de Londres vá ser muito baixo (fala-se em cinco atletas com
mínimos), ainda que possa passar desapercebido no conjunto dos atletas em
prova, atendendo à simultaneidade das partidas dos 50 km (masculinos e
femininos). Ao mesmo tempo, haverá com certeza muitas atletas que, se tivessem
sabido atempadamente da possibilidade de competir em 50 km nestes campeonatos
do mundo, teriam tentando fazer mínimos para poderem alinhar. Portanto, o
princípio de justiça que leva a equiparar o número de provas para masculinos e
para femininos nos mundiais de atletismo e a atribuir prémios monetários também
nos 50 km femininos não se reflecte depois na criação de oportunidades iguais
para todas as potenciais interessadas, havendo aqui beneficiadas (poucas) e
prejudicadas (muitas). Além de, como se viu atrás, poder haver também quem
receba prémios sem ter terminado a prova.
Há poucos meses, o mundo da marcha (e do atletismo em geral) despertou
para a ameaça que a própria AIFA e o Comité Olímpico Internacional faziam à
continuidade dos 50 km marcha no programa dos Jogos Olímpicos. Agora, a inclusão
dos 50 km femininos nas grandes competições internacionais de atletismo (para
já, nos campeonatos do mundo, depois da inclusão nos mundiais de selecções de
marcha de há um ano) pode chegar em reforço do princípio da manutenção da
histórica distância longa no programa olímpico. Esse é um aspecto positivo
desta questão, mas será preciso estar alerta para a eventualidade de um
eventual insucesso dos 50 km femininos em Londres acabar por servir de
argumento dos que se perfilam para continuar a combater os 50 km marcha no
programa dos Jogos Olímpicos.