Breve notícia publicada pela revista «Stadium» a propósito da prova de marcha realizada em Faro em 15/1/1939 |
Ao longo de mais de
três meses, o blogue «O Marchador» divulgou uma realidade conhecida de muito
poucos, para não dizer de nenhuns: a realização de uma quantidade inusitada de
provas de marcha levadas a efeito em vários pontos do país durante o ano de 1938
e início de 1939. Tudo começou com uma iniciativa do jornal «Os Sports», que em
Abril de 1938 desencadeou um processo cuja dimensão provavelmente não tinha
imaginado nem nas melhores previsões.
A prova fora
apresentada como o renascimento da modalidade em Portugal, décadas depois de
ter entrado em letargia. Havia quem se lembrasse das provas de marcha que
tinham integrado o programa dos Jogos Olímpicos Nacionais posteriores a 1912.
Haveria também quem tivesse memória de alguns resultados de atletas como Djalme
Bastos ou Ilídio Costa.
O jornalista Sequeira
Andrade, abordado recentemente pela equipa deste blogue, recordou provas
ocorridas também em 1915 e 1922, onde se revelaram atletas como Artur Flores
(CIF) e Salazar Carreira (Sporting), que viria a ser presidente do Sporting
Clube de Portugal e da Federação Portuguesa de Atletismo. São boas pistas para
as próximas pesquisas.
Mas a verdade é que
dessa fase inicial dos anos 1920 até à fase final da década seguinte, marcha
era coisa que poucos conheciam na vertente de competição desportiva. Por essa
razão, surpreende (ou talvez nem tanto) que um jornal tenha lançado mão dessa
disciplina do atletismo com vista a revitalizá-la. Primeiro, organizando uma
competição que atraiu mais de 400 inscritos; depois, apoiando a organização de
provas que alguns clubes quiseram levar a efeito, inspirados na prova de «Os
Sports»; por fim, suscitando na concorrência (entenda-se, em «O Século») o
desejo de fazer ainda melhor, juntando maior número de atletas em prova que, por
sua vez, levou a cabo meses mais tarde.
Tudo isso fez de 1938
um ano extravagante na história da marcha atlética em Portugal. Ao todo, de
Abril de 1938 a Janeiro de 1939 foram registadas na imprensa da época nada
menos que cinco provas em Lisboa, uma entre Vila Franca de Xira e a capital,
uma em Setúbal, uma em Coimbra (além de outra organizada mas não concretizada
por falta de concorrentes), uma no Barreiro e uma em Faro. A estas dez
competições pode juntar-se uma iniciativa menos formal mas também divulgada nos
jornais: a volta a Portugal protagonizada por três «marchadores» do Sportivo
Clube Ocidental, impelidos pelo exemplo das provas de marcha que tinham
presenciado na Primavera desse ano.
Do conjunto de
participantes nestas provas, alguns nomes ressaltam pela regularidade da
presença em algumas das competições em causa. Entre eles, três nomes
elevaram-se acima dos companheiros pela notoriedade resultante das vitórias
alcançadas e pela amplificação da fama através das páginas dos jornais: Alberto
Sousa, Manuel Guerreiro e Albertino Loureiro. À sua conta, este trio averbou
oito vitórias nas dez provas disputadas, algumas com centenas de concorrentes,
havendo em várias ocasiões competição directa entre estes atletas. Eram as
novas «estrelas» a surgir no firmamento da marcha. Pena foi que não tivessem
podido aprofundar a ligação à modalidade e confrontar o seu valor com o dos
especialistas que se evidenciavam nas competições internacionais.
Os jornais «Os
Sports» e «O Século» tiveram papel determinante em todas estas dez competições,
fosse como organizadores (aconteceu em três casos), fosse como patrocinadores
(como sucedeu nas restantes sete provas). No entanto, nunca se misturaram.
Concorriam na edição de jornais, mas também na organização de eventos desportivos.
Uma competição que se notava até na diferente forma como cada um falava das
suas provas e das do «adversário». Depois, dir-se-ia que se cansaram e
desistiram. Se não desistiram de organizar provas e torneios desportivos, pelo
menos da marcha desistiram.
Ao levarem a efeito
iniciativas de carácter desportivo, como as provas de marcha, os órgãos de imprensa
contribuíram para a divulgação e o desenvolvimento da prática deste desporto
(apesar de, como se viu, não ter resultado desse empenho inicial qualquer
continuidade duradoura). Mas, ao mesmo tempo, esses jornais e revistas
beneficiavam do trabalho organizativo que levavam a cabo. Tratando-se de
jornais de temática desportiva ou com secções de desporto, ao organizarem
provas desportivas estavam a garantir a matéria-prima com que «manufacturavam»
os «produtos» da sua indústria (as notícias). Ao mesmo tempo, sendo
organizadores, também eram os jornais quem divulgava, aos poucos, os
regulamentos, os prazos de inscrição, as listas de prémios e até as listas de
inscritos (nalguns casos incluindo fotografias dos atletas), assim obrigando à
compra dos jornais para que os interessados se mantivessem a par dos
desenvolvimentos organizativos - o mesmo é dizer que faziam aumentar a
dependência e o consumo dos seus produtos, traduzidos nas sucessivas edições.
Esta prática atingiu
o ponto mais alto com a exploração emocional dos sentimentos bairristas, quando
«O Século» decidiu organizar a sua prova de 28 de Agosto em função dos bairros
(explorou e, de certa forma, até criou esse sentimento bairrista, dado que
habitualmente as representações em provas de atletismo não eram de bairros
contra bairros).
Mas, de tudo isto, o
que resultou foi um punhado de provas, uma quantidade de jornais vendidos, umas
«estrelas» lançadas no mundo do espectáculo desportivo e logo largadas, porque
outros valores mais altos porventura se alevantassem.
Seria depois preciso
esperar quase quarenta anos até que uma madrugada libertadora de 1974 viesse
abrir de novo a porta para que a marcha conseguisse finalmente impor-se como
especialidade plena do atletismo português. Tardou, mas chegou. Então
implantou-se pela determinação dos seus atletas e dirigentes, ganhou raízes,
fortaleceu-se, singrou. Até ser o que é hoje, com um passado que agora se conhece
melhor.