quarta-feira, 9 de abril de 2014

Marcha em Portugal na Primavera de 1938 (XIV)

Breve notícia publicada pela revista «Stadium»
a propósito da prova de marcha realizada
em Faro em 15/1/1939
Ao longo de mais de três meses, o blogue «O Marchador» divulgou uma realidade conhecida de muito poucos, para não dizer de nenhuns: a realização de uma quantidade inusitada de provas de marcha levadas a efeito em vários pontos do país durante o ano de 1938 e início de 1939. Tudo começou com uma iniciativa do jornal «Os Sports», que em Abril de 1938 desencadeou um processo cuja dimensão provavelmente não tinha imaginado nem nas melhores previsões.

A prova fora apresentada como o renascimento da modalidade em Portugal, décadas depois de ter entrado em letargia. Havia quem se lembrasse das provas de marcha que tinham integrado o programa dos Jogos Olímpicos Nacionais posteriores a 1912. Haveria também quem tivesse memória de alguns resultados de atletas como Djalme Bastos ou Ilídio Costa.

O jornalista Sequeira Andrade, abordado recentemente pela equipa deste blogue, recordou provas ocorridas também em 1915 e 1922, onde se revelaram atletas como Artur Flores (CIF) e Salazar Carreira (Sporting), que viria a ser presidente do Sporting Clube de Portugal e da Federação Portuguesa de Atletismo. São boas pistas para as próximas pesquisas.

Mas a verdade é que dessa fase inicial dos anos 1920 até à fase final da década seguinte, marcha era coisa que poucos conheciam na vertente de competição desportiva. Por essa razão, surpreende (ou talvez nem tanto) que um jornal tenha lançado mão dessa disciplina do atletismo com vista a revitalizá-la. Primeiro, organizando uma competição que atraiu mais de 400 inscritos; depois, apoiando a organização de provas que alguns clubes quiseram levar a efeito, inspirados na prova de «Os Sports»; por fim, suscitando na concorrência (entenda-se, em «O Século») o desejo de fazer ainda melhor, juntando maior número de atletas em prova que, por sua vez, levou a cabo meses mais tarde.

Tudo isso fez de 1938 um ano extravagante na história da marcha atlética em Portugal. Ao todo, de Abril de 1938 a Janeiro de 1939 foram registadas na imprensa da época nada menos que cinco provas em Lisboa, uma entre Vila Franca de Xira e a capital, uma em Setúbal, uma em Coimbra (além de outra organizada mas não concretizada por falta de concorrentes), uma no Barreiro e uma em Faro. A estas dez competições pode juntar-se uma iniciativa menos formal mas também divulgada nos jornais: a volta a Portugal protagonizada por três «marchadores» do Sportivo Clube Ocidental, impelidos pelo exemplo das provas de marcha que tinham presenciado na Primavera desse ano.

Do conjunto de participantes nestas provas, alguns nomes ressaltam pela regularidade da presença em algumas das competições em causa. Entre eles, três nomes elevaram-se acima dos companheiros pela notoriedade resultante das vitórias alcançadas e pela amplificação da fama através das páginas dos jornais: Alberto Sousa, Manuel Guerreiro e Albertino Loureiro. À sua conta, este trio averbou oito vitórias nas dez provas disputadas, algumas com centenas de concorrentes, havendo em várias ocasiões competição directa entre estes atletas. Eram as novas «estrelas» a surgir no firmamento da marcha. Pena foi que não tivessem podido aprofundar a ligação à modalidade e confrontar o seu valor com o dos especialistas que se evidenciavam nas competições internacionais.

Os jornais «Os Sports» e «O Século» tiveram papel determinante em todas estas dez competições, fosse como organizadores (aconteceu em três casos), fosse como patrocinadores (como sucedeu nas restantes sete provas). No entanto, nunca se misturaram. Concorriam na edição de jornais, mas também na organização de eventos desportivos. Uma competição que se notava até na diferente forma como cada um falava das suas provas e das do «adversário». Depois, dir-se-ia que se cansaram e desistiram. Se não desistiram de organizar provas e torneios desportivos, pelo menos da marcha desistiram.

Ao levarem a efeito iniciativas de carácter desportivo, como as provas de marcha, os órgãos de imprensa contribuíram para a divulgação e o desenvolvimento da prática deste desporto (apesar de, como se viu, não ter resultado desse empenho inicial qualquer continuidade duradoura). Mas, ao mesmo tempo, esses jornais e revistas beneficiavam do trabalho organizativo que levavam a cabo. Tratando-se de jornais de temática desportiva ou com secções de desporto, ao organizarem provas desportivas estavam a garantir a matéria-prima com que «manufacturavam» os «produtos» da sua indústria (as notícias). Ao mesmo tempo, sendo organizadores, também eram os jornais quem divulgava, aos poucos, os regulamentos, os prazos de inscrição, as listas de prémios e até as listas de inscritos (nalguns casos incluindo fotografias dos atletas), assim obrigando à compra dos jornais para que os interessados se mantivessem a par dos desenvolvimentos organizativos - o mesmo é dizer que faziam aumentar a dependência e o consumo dos seus produtos, traduzidos nas sucessivas edições.

Esta prática atingiu o ponto mais alto com a exploração emocional dos sentimentos bairristas, quando «O Século» decidiu organizar a sua prova de 28 de Agosto em função dos bairros (explorou e, de certa forma, até criou esse sentimento bairrista, dado que habitualmente as representações em provas de atletismo não eram de bairros contra bairros).

Mas, de tudo isto, o que resultou foi um punhado de provas, uma quantidade de jornais vendidos, umas «estrelas» lançadas no mundo do espectáculo desportivo e logo largadas, porque outros valores mais altos porventura se alevantassem.

Seria depois preciso esperar quase quarenta anos até que uma madrugada libertadora de 1974 viesse abrir de novo a porta para que a marcha conseguisse finalmente impor-se como especialidade plena do atletismo português. Tardou, mas chegou. Então implantou-se pela determinação dos seus atletas e dirigentes, ganhou raízes, fortaleceu-se, singrou. Até ser o que é hoje, com um passado que agora se conhece melhor.