Capa de «O Século» no dia a seguir à I Prova Popular de Marcha |
Quando em Fevereiro
de 1938 o jornal «Os Sports» anunciou a intenção de organizar uma prova de
marcha aberta a qualquer interessado, talvez ninguém pensasse que no dia 10 de
Abril haveria mais de 400 «marchadores» à partida. O jornal já habituara a
comunidade desportiva à organização de provas ou torneios de diferentes
modalidades, fossem elas individuais ou colectivas. Era uma forma de contribuir
para o desenvolvimento da prática e da organização desportivas, mas também
(sobretudo) uma forma de promoção publicitária do próprio jornal.
No entanto, a prática
adoptada por jornais de organizar acontecimentos desportivos (e não só) não era
exclusiva deste título pertencente à mesma empresa do «Diário de Notícias».
Entre outros, também o concorrente «O Século» elegia a organização e o
patrocínio de provas desportivas como forma de autopromoção. Com maior ou menor
demonstração de «fair play», estes jornais competiam entre si não só na venda
de jornais e na atracção de leitores-compradores mas também no sucesso das
iniciativas não editoriais que levavam a cabo. Iniciativas que hoje
classificaríamos como «marketing». Por isso, seria interessante saber como «O
Século» iria responder ao sucesso obtido por «Os Sports» quando juntou todos
aqueles atletas à partida na Praça do Comércio, em Lisboa, para a marcha de 25
km que nessa manhã de domingo de Abril iria levar os concorrentes a caminhar
por estradas, ruas e azinhagas de Belém, Algés, Carnaxide, Queluz e Benfica,
antes de reentrarem na capital.
Pois, «O Século» não
se fez rogado nem se acabrunhou. Uns meses depois, na edição de 10 de Agosto de
1938, anunciou de forma relativamente discreta a intenção de levar a efeito uma
prova popular de marcha. «O 'Século' vai promover a 'I Prova Popular de Marcha'
entre atletas dos diferentes bairros populares da capital», podia ler-se como
título na página 6 dessa edição. Título, por sinal, bem extenso, como era usual
na época. A divulgação da prova surgia após uma reunião ocorrida na véspera na
redacção do jornal e que juntara delegados de mais de vinte colectividades,
muitos deles identificados no primeiro anúncio da prova no jornal e desde logo
se associando cada clube ao respectivo bairro.
E esse terá sido o
grande trunfo de «O Século»: não apenas incentivar os atletas a participar e os
clubes a fazerem-se representar na prova mas também galvanizar o espírito
bairrista e garantir também por essa via uma forte adesão de concorrentes.
A prova era marcada
para o domingo dia 28 desse mês de Agosto (portanto, menos de três semanas
depois do primeiro anúncio) e aparecia divulgada pela entidade organizadora
como sendo uma forma de corresponder ao desejo dos clubes de «manter o
interesse da sua massa associativa durante o período de 'defeso' do
'football'», modalidade que estava já fortemente implantada em várias zonas do
país e que constituía importante matéria informativa para a imprensa. O mesmo é
dizer que o referido «defeso» do futebol era um problema para os clubes mas
também para as empresas jornalísticas, sendo para uns e para outros uma espécie
de farinha que faltava para amassar o pão de cada dia.
O percurso da prova
era anunciado com o seguinte itinerário: partida dos Restauradores, em direcção
ao Rossio, Rua do Ouro, Terreiro do Paço, Arsenal, Cais do Sodré, Avenida 24 de
Julho, Avenida da Índia até à primeira travessa que liga à Junqueira, Santo
Amaro, Calvário, Alcântara, Rua Maria Pia, Rua Arco do Carvalhão, Rua de
Campolide, Rua Marquês de Fronteira, Avenidas António Augusto de Aguiar,
Marquês Sá da Bandeira e de Berna, Campo Pequeno, Avenida da República, Praça
Duque de Saldanha, Avenida Fontes Pereira de Melo, Praça Marquês de Pombal,
Avenida da Liberdade e Restauradores.
Até ao dia da prova,
«O Século» divulgou quase todos os dias mais informação sobre como iria decorrer
a competição, como ela estava a ser organizada e como estavam a aderir os
bairros de Lisboa. Questão tratada de início foi a da «fiscalização», forma de
referir a necessidade de ajuizar a técnica dos atletas sob o pronto de vista de
um regulamento que, não existindo formalmente em escrito, tinha sido combinado
entre o jornal e os clubes. Assim, foi decidido e anunciado que haveria «um
serviço secreto de fiscalização», composto por delegados dos clubes
distribuídos pelas ruas do percurso, além de haver «um serviço de fiscalização
em 'moto', que acompanhará os diferentes núcleos de 'marchadores'».
À medida que os dias
passavam e se aproximava a data da prova iam surgindo nas páginas do jornal
notas sobre a evolução das inscrições. Primeiro alguns atletas, de meia dúzia
de clubes em representação de outros tantos bairros. Depois, mais nomes, mais
clubes, mais bairros - e percebia-se que a adesão era cada vez maior e que tudo
apontava para mais um grande sucesso organizativo. No final de uma semana de divulgação
e de apenas alguns dias de inscrição, «O Século» garantia já a adesão de 16
bairros. Quatro dias depois falava-se em centenas de marchadores de 46 bairros.
Por fim, terminado o prazo de inscrição, o jornal proclamava em título na
edição de 22 de Agosto: «751 'marchadores' disputam no domingo a 'I Prova
Popular de Marcha' inter-bairros organizada pelo 'Século'».
Só o Grupo Desportivo
da Mouraria faria alinhar 100 concorrentes; o Botafogo, da Picheleira,
inscrevia 65; o terceiro clube em inscrições era o dos Ardinas, com 54
participantes. A todos se exigia que, durante a prova, não abandonassem o passo
de marcha para correrem, do que resultaria a desclassificação.
Depois de anunciado o
total de inscrições recebidas na redacção, o número 751 surgiu por nada menos
que seis vezes no título das notícias que nessa semana continuaram a anunciar a
realização da prova, que teria lugar no domingo 28 de Agosto. O número era brandido
como uma espécie de troféu que demonstrava o triunfo de «O Século» sobre o
feito de «Os Sports», quatro meses antes, que tivera 410 inscrições.
No dia a seguir à
prova, a marcha foi o destaque de capa de «O Século», com título a cinco
colunas e duas grandes imagens da competição, uma delas mostrando o vencedor a
cortar a meta. A reportagem prosseguia na página 7, ilustrada com mais quatro
imagens. E o vencedor era, de novo, Alberto Sousa, do Raio Lisboa Club, que
assim deu a alegria da vitória ao bairro da Mouraria, ao qual pertencia o seu
clube.
O atleta natural do
Bombarral, que antes vencera a prova organizada por «Os Sports» em 10 de Abril
e fora segundo classificado na do Fontessantense, a 5 de Junho, dava mostras de
se posicionar como um dos melhores marchadores portugueses da época, ao lado de
Albertino Loureiro (do Barreiro) e de Manuel Guerreiro (de Setúbal), também
eles vencedores em algumas das competições realizadas em 1938. Aliás, Alberto
Sousa iria ainda impor-se em mais duas provas: a ligação Vila Franca de Xira a
Lisboa e a prova realizada em Faro, ambas já no mês de Janeiro de 1939.
Nesta marcha
«inter-bairros» de Lisboa, Alberto Sousa só na descida da Avenida da Liberdade
garantiu a vitória após a desclassificação dos dois últimos companheiros que
com ele vinham desde o Calvário: Mário Brites e José Jesus, eliminados por
ordem do júri, composto por Egas Ribeiro (presidente da Associação de Atletismo
de Lisboa), António Cerqueira, Espírito Santo e José Graça.
Na meta, o atleta do
Raio Lisboa Club seria creditado com o tempo de 1.21.57 h, menos 17 segundos
que Constantino Gama e menos 32 que Modesto Pisco, tendo sido desclassificados
131 concorrentes.
Classificação:
1.º, Alberto Sousa
(Raio Lisboa Club, Mouraria), 1.21.57
2.º, Constantino Gama
(GS «Os Invencíveis», S. Sebastião), 1.22.14
3.º, Modesto Pisco
(CD Sete Rios), 1.22.29
4.º, Guilherme Pires
Duarte (Populares do Sporting Club de Portugal, Baixa), 1.24.30
5.º, Artur Gomes (SC
Loureiros, Alcântara), 1.25.05
6.º, Manuel Graça (CD
Sete Rios), 1.25.11
7.º, Armando Gomes
(individual, bairro Camões), 1.26.36
8.º, Manuel Silva
(Populares do Sporting Club de Portugal, Baixa), 1.27.08
9.º, Joaquim Veneza
(Populares do Sporting Club de Portugal, Baixa), 1.27.15 *
10.º, Alexandre Garcia
(Populares do Sporting Club de Portugal, Baixa), 1.27.15 *
* Marcas divulgadas
sem rigor (no final da reportagem, consta 1.17.15).