Maurizio Damilano, campeão do mundo em Tóquio-1991. Foto: George Herrinshaw. |
A escolha feita este
fim-de-semana pelo Comité Olímpico Internacional da cidade de Tóquio para
acolher os Jogos da XXXII Olimpíada, no Verão de 2020, trouxe à memória a
grande realização dos Jogos de 1964, na mesma cidade, e também dos Jogos de
Inverno de 1972 e 1998, celebrados noutras cidades japonesas, respectivamente
Sapporo e Nagano. Grandes eventos que, em épocas diferentes e para gerações
diferentes de desportistas, marcaram a história desportiva mundial.
Mas a escolha da
capital japonesa para os Jogos Olímpicos de 2020 trouxe igualmente, para os
adeptos do atletismo, a recordação dos terceiros campeonatos do mundo da
modalidade, ali realizados em 1991. Com facilidade ocorrem à memória as
lembranças do fabuloso despique entre Carl Lewis e Mike Powell no salto em
comprimento, a última grande vitória internacional do martelista Yuriy Sedykh,
a notável supremacia de Liz McColgan sobre a armada chinesa na corrida de 10
mil metros ou a única grande vitória mundial de Alina Ivanova na marcha (10 km)
antes de se tornar corredora de maratonas.
Ora, precisamente das
outras duas provas de marcha ficaram duas histórias de que alguns já estarão
esquecidos. Uma delas, nos 50 km, naquele dia em que, fartos de chuva e de
competirem tentando superiorizar-se um ao outro, os soviéticos Aleksandr
Potashov e Andrey Perlov decidiram dar-se tréguas e, em vez de se empenharem na
luta final pela vitória, optaram por cortar a meta abraçados.
Cumpriram sozinhos na
frente os vinte quilómetros finais da prova, como tantas vezes tinham feito
antes. À entrada na pista, um e outro, lado a lado, levantavam o braço em sinal
de vitória. E vitória seria a de ambos, quinhentos metros depois. Quinhentos
metros percorridos sempre lado a lado, Potashov à direita, Perlov à esquerda. A
vinte metros do fim, o abraço que os uniu até à meta, numa comovedora
demonstração de amizade entre rivais e que por uma vez obrigou o «photofinish»
a decidir da vitória numa prova mundial de marcha em estrada (e pista).
Atitude idêntica já
tinham assumido três meses antes, nos 30 km de Sesto San Giovanni, mas num
campeonato do mundo o gesto dos dois marchadores assumia outra dimensão. E
levou mesmo a que as autoridades atléticas mundiais se demonstrassem
incomodadas com quem relegava para segundo plano a questão competitiva.
Mais hilariante foi a
outra história, ocorrida nos 20 km. Fosse por algum descuido (des)organizativo,
fosse por excesso de zelo dos marchadores envolvidos nesta prova (também ela
sob chuva), a verdade foi que os líderes da competição chegaram ao estádio
antes da hora prevista.
À entrada para o
último quilómetro, o soviético Mikhail Shchennikov e o italiano Maurizio
Damilano passavam na frente, um pouco destacados da concorrência mais próxima.
Marchavam claramente abaixo dos quatro minutos por quilómetro, preparando-se
para um excelente resultado final. De repente, a aproximação ao estádio causa o
pânico na pista, onde mais uma série eliminatória de 100 metros masculinos está
em preparação mesmo na boca do túnel.
Os juízes correm a
mandar retirar os velocistas. Damilano e Shchennikov já estão no curto túnel
quando se começa a retirar os blocos das pistas exteriores. Os marchadores
entram na pista a esgueirar-se entre blocos ainda montados e juízes atónitos. A
prova vai para uma marca final abaixo da hora e vinte.
Nesse momento começam
a chegar os juízes com os vasos de flores que já deveriam estar na linha de
separação das pistas 4 e 5, a demarcar as zonas onde os marchadores deveriam
cumprir os últimos quinhentos e poucos metros (a recta da meta e mais uma volta
inteira). É tarde de mais: Damilano e Shchennikov são mais rápidos e logo tomam
a corda na pista 1.
É também o momento em
que o soviético, pensando estar a chegar ao final, «sprinta» para a meta,
passando em primeiro lugar, para logo a seguir perceber que há mais uma volta
para dar. É Maurizio Damilano quem lhe faz sinal de que tem de continuar. Mas
Shchennikov gastou nessa aceleração as energias que lhe restavam para uma luta
mais igual. Atrasa-se e vê Damilano ganhar uma vantagem decisiva.
A 350 metros do
final, na curva a seguir à recta da meta, outros juízes apercebem-se de que,
também eles, já não vão a tempo de posicionar os vasos de marcação no local
próprio. A culpa não terá sido deles. E os dois primeiros seguem o seu caminho
pela pista 1, sem ninguém ou coisa alguma que lhes diga por onde deviam ir.
De novo na recta da
meta, desta vez para terminar de facto, Damilano apresenta-se com quase 50
metros de avanço. Os vasos já estão colocados no lugar devido. Só os primeiros
farão uns metritos a menos, todos os demais terão mesmo de cumprir os 20
quilómetros regulamentares.
Maurizio Damilano
vence, creditado oficialmente com 1.19.37 h, recorde dos campeonatos e menos
nove segundos que Shchennikov. Um feito notável do marchador piemontês,
vencedor dos mundiais precedentes (Roma-1987) e campeão olímpico nos já
distantes Jogos de Moscovo-1980.
Uma história
rocambolesca que ficou como nódoa na excelente organização nipónica de um dos
mundiais de atletismo mais emocionantes de sempre.
Resta acrescentar que
a classificação foi mesmo validada, apesar de os primeiros terem participado
numa espécie de mundial dessa «nova» distância dos quase-20-km marcha. Mas mal
seria se assim não fosse, dado que se alguém não teve culpa do sucedido foram os
atletas.