domingo, 3 de abril de 2016

Dopagem, regressos e promiscuidade

Foto: EMTV
No passado dia 19 de Março, a Agência Mundial Antidopagem anunciou que a Espanha e o México não cumprem o Código Mundial Antidopagem. Fundamento: estes dois países não puseram em prática determinações cuja data-limite de implementação terminara na véspera.

Uma semana antes, a Associação Internacional de Federações de Atletismo anunciou que Bielorrússia, Etiópia, Marrocos, Quénia e Ucrânia vão estar sob vigilância apertada por se considerar que estes países precisam de aperfeiçoar os respectivos sistemas de controlo de dopagem, forma eufemista de dizer que têm sistemas em que não se pode confiar.

Nos últimos dois anos (grosso modo), a Rússia foi abalada por uma sequência inusitada de suspensões de atletas devidas a dopagem. O grande urso está suspenso das grandes competições internacionais de atletismo e corre o risco de não participar nos próximos Jogos Olímpicos. Na rede foram apanhados vários marchadores campeões olímpicos, mundiais e europeus que, em vários casos, têm quase cumpridas as respectivas sanções, aprestando-se, por isso, para retomar a actividade competitiva (curiosamente, nunca deixaram de treinar-se nos mesmos sítios que antes, com os mesmos técnicos e possivelmente seguindo os mesmos métodos de outrora).

Há poucos dias foi conhecida a notícia da erradicação do treinador Viktor Chyogin, que para muitos é o responsável não apenas pelo centro de treino de marchadores que ostenta o seu nome, na Mordóvia, mas também pelos métodos de treino aí seguidos e não compagináveis com as normas antidopagem internacionais.

O escândalo do «doping» na Rússia é um dos maiores do género desde sempre e pode ser consequência de um sério empenho na luta internacional pela verdade desportiva. Mas pode também ter o perigo de se estar a usar o caso russo para esconder outros similares, eventualidade para a qual já por várias vezes «O Marchador» alertou.

Em todo o caso, parece que algumas dúvidas começam a poder esclarecer-se, seja em relação aos países mencionados mais acima, seja em relação a outros, seja mesmo em relação a casos isolados de indivíduos (não só atletas, longe disso) com responsabilidades importantes em processos de dopagem que têm passado entre os pingos da chuva.

Aqui chegados, importa reavivar memórias mais descuidadas para aqueles casos de que se aguarda desenvolvimento mas que parece estarem a ser deixados na sombra. Por exemplo, não se percebe muito bem o que foi feito em relação ao caso dos marchadores russos que há pouco mais de um ano foram descobertos a participar em competições (nos papéis de atletas, treinadores e dirigentes) enquanto cumpriam suspensões por dopagem. Depois de desmascarados, ainda se atreveram a tentar disfarçar os factos, procurando convencer o mundo desportivo de que a verdade não era o que parecia, quando afinal tudo estava bem à vista e só não via quem não queria ver.

Em meados de Março ficou a saber-se que em Itália se trabalha afincadamente para que Alex Schwazer regresse à competição o mais rapidamente possível. E já nos mundiais de selecções de Roma, se puder ser, para mais tarde chegar aos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Apesar de estar a cumprir suspensão de três anos e nove meses por análise positiva de EPO e desconformidades no passaporte biológico e de aguardar decisão da Justiça italiana que pode ter consequências sobre a legitimidade do título europeu de 20 km de Barcelona-2010, Alex Schwazer realizou um teste a 13 de Março com o intuito anunciado de obter informação sobre o actual estado de forma do atleta, tendo em conta a intenção de regresso à actividade competitiva no final da referida suspensão, que termina em 29 de Abril de 2016. Contando com o beneplácito da Federação Italiana de Atletismo (Fidal), o teste decorreu num percurso definido na estrada fronteira ao centro de produção da Radiotelevisão Italiana (Rai) em Saxa Rubra, próximo de Roma, teve a colaboração do diretor técnico para as selecções nacionais, Massimo Magnani, e do conselheiro de marcha Antonio La Torre e foi acompanhado pelos juízes de marcha Davide Bandieramonte e Giovanni Ferrari.

Naturalmente cabe perguntar: como é possível um atleta suspenso estar a receber apoio técnico precisamente da entidade que deve zelar pela eficácia das decisões sancionatórias?

Ora, toda esta questão assume outras proporções, com a perspectiva de regresso à alta competição de atletas que se alcandoraram aos mais altos píncaros (entenda-se: foram campeões olímpicos). Atletas que os adeptos se habituaram a considerar, a respeitar, mas que depois se revelaram imerecedores desse reconhecimento, precisamente porque tinham construído um sucesso desportivo assente na mentira e no engano.

Como se o problema não fosse já muito grave, os contornos com que agora se desenha dão-lhe uma configuração ainda mais macabra quando se começa a perceber uma estranha promiscuidade entre esses atletas, por um lado, e, por outro, dirigentes, treinadores ou juízes com altas responsabilidades nacionais ou internacionais. Foi notícia há poucos dias que um ex-alto dirigente olímpico italiano com responsabilidades precisamente na área da luta contra a dopagem (também colaborador durante uma década da Agência Mundial Antidopagem) se afastou de outros compromissos para colaborar nesse processo de regresso de Schwazer à competição, sendo agora o seu treinador pessoal.

Ou seja, aqueles que deveriam preservar a verdade desportiva e manter as instituições acima de qualquer suspeita são os que, pelo menos aparentemente, estão a ajudar os batoteiros a voltar à actividade em que se notabilizaram – sem respeito pelos mais elementares princípios éticos do desporto.

A luta contra a batota (e a dopagem é apenas uma forma que a batota assume) não será ganha de um dia para outro. Ninguém sabe, até, se alguma vez será totalmente vencida. Mas, entretanto, convém não esquecer que há interesses que se escondem e que se aproveitam da distracção dos incautos.