sábado, 2 de novembro de 2013

Shaul Ladany e Peter Frenkel, encontro em 2012

Shaul Ladany (esq.) e Peter Frenkel, durante o encontro de 2012
em Munique. Foto: geher-team.de
Já por mais de uma vez a figura do marchador israelita Shaul Ladany foi evocada em «O Marchador» ou noutras publicações portuguesas anteriores dedicadas à marcha atlética, descrevendo a forma como escapou ao ataque palestiniano à aldeia olímpica de Munique, durante os Jogos Olímpicos de 1972, e contando da sua ligação de longa data a esta disciplina olímpica do atletismo.

O texto que a seguir se apresenta, com a devida vénia ao autor, foi publicado em 2012 na revista da Sociedade Internacional de Historiadores Olímpicos («Journal of Olympic History») e é da autoria de Peter Frenkel, o atleta da República Democrática Alemã que se sagrou campeão dos 20 km marcha nos Jogos Olímpicos de Munique. Fica como testemunho de um dos episódios trágicos na história do desporto moderno e como libelo contra a violência e a favor da paz.

Lembrando o massacre de Munique: nunca ceder ao terror
Por Peter Frenkel, campeão olímpico dos 20 km marcha em Munique-1972

A ideia olímpica entusiasmou-me ainda muito novo. O fascínio atinge a maior dimensão quando alguém – como aconteceu comigo – tem a felicidade de realizar o sonho de uma vitória olímpica. Munique-1972 proporcionou-me o momento de maior felicidade da minha vida, mas ao mesmo tempo senti o lado negro do grande evento olímpico, sempre em perigo de ser desvirtuado por forças estranhas ao desporto.

No dia 31 de Agosto de 1972 ganhei a medalha de ouro dos 20 km marcha. Quando, no dia seguinte, cheguei à pista de treino havia muitas mãos para cumprimentar, que a fraternidade entre marchadores sempre gerou um relacionamento próximo e caloroso. Entre os que me felicitaram estava um israelita de baixa estatura com quem me cruzara de forma rápida em 1968, no México: o Dr. Shaul Ladany, professor de engenharia. A 3 de Setembro seria a vez de ele competir nos 50 km. Terminou num respeitável 19.º lugar mas, para lá desse resultado, nada mais sabia dele então.

Só mais tarde vim a saber que aquela não era a primeira vez que se encontrava na Alemanha. Shaul Ladany tinha lá estado antes uma vez – em 1944, com oito anos – quando os nazis o levaram para o campo de concentração de Bergen-Belsen. Nessa ocasião, o destino tratou-o relativamente bem, já que conseguiu escapar a esse inferno quando a sua liberdade foi comprada pelo Comboio de Kasztner(*). Mas, por outro lado, mais de cinquenta membros da sua família pereceram, vítimas do holocausto.

Passados 28 anos, Munique pretendeu levar a cabo os Jogos da Alegria, para melhorar a imagem da Alemanha. Mas, mais uma vez, agora devido a uma indesculpável falha das forças de segurança, Shaul Ladany teve a vida em grande perigo. E de novo a boa estrela acompanhou-o nesse fatídico dia 5 de Setembro. Tragicamente, não houve um final feliz para onze dos seus colegas de delegação, mortos no ataque do grupo terrorista palestino.

Com tudo isso, eu só poderia compreender que Shaul Ladany tivesse evitado a Alemanha para sempre e recusasse o meu convite para, passados 40 anos, visitar a minha cidade, Potsdam. No entanto, o que aconteceu foi o contrário. Tivemos um sentido reencontro e a seguir fomos juntos assistir às cerimónias evocativas em Munique e em Fürstenfeldbruck, onde a tentativa de resgate dos reféns se gorou.

Naturalmente, a nossa conversa andou de início à volta desses acontecimentos e, de facto, eu próprio tinha sido testemunha involuntária do sequestro. Fazia parte da equipa da RDA e, por acaso, os nossos quartos eram precisamente em frente aos dos israelitas. Pouco antes das cinco da manhã fui acordado por disparos e barulho no átrio. Quando cheguei à varanda, vi no edifício diagonalmente oposto ao nosso um homem mascarado a explicar aos polícias que tinham ocorrido ao local que os atletas de Israel estavam a ser sequestrados.

Por sorte, Shaul Ladany dormia noutro edifício que ou não foi descoberto pelos terroristas ou foi por eles ignorado. Acredita mais nesta última possibilidade e pensa que deve a vida aos dois colegas da equipa de tiro com quem partilhava o apartamento e de quem os palestinos talvez tivessem conhecimento. Conforme me contou, na noite anterior tinha assistido com a sua equipa ao musical «Um Violino no Telhado» e no intervalo toda a equipa tinha subido ao palco para tirar uma fotografia. Seria a última com todos eles vivos.

Quando regressaram à aldeia, por volta da meia-noite, emprestou o despertador ao treinador de luta Moshe Weinberg, que queria levantar-se cedo. Depois disso, Shaul Ladany, que é um grande coleccionador, foi recortar notícias de jornal até se deitar, já passava das três da manhã. Duas horas mais tarde, quando foi acordado pelos colegas de quarto, Moshe Weinberg já estava morto. Tinha tentado escapar mas em vão.

Por volta das 7h30, a equipa da RDA foi informada de que o seu edifício estava a ser evacuado. Agentes de segurança fortemente armados ocuparam a varanda. Hora e meia mais tarde reunimo-nos na garagem da cave, de onde fomos levados em autocarros para alojamentos alternativos perto de Neuschwanstein. Aí ficamos condenados à inactividade. O que entretanto se passava em Munique, onde tinha começado um duro processo de negociação pelas vidas dos reféns, era-me totalmente desconhecido. Só no dia seguinte, quando da cerimónia em memória das vítimas no Estádio Olímpico, vim a saber que à noite tinha havido uma tentativa completamente falhada de resgate dos sequestrados. Fiquei furioso por a chefia da minha delegação não me ter autorizado a assistir.

Shaul e os restantes sobreviventes do massacre regressaram a Israel no dia seguinte. Para ele, deve ter sido um sentimento terrível saber que, no porão do avião, estavam os caixões dos colegas. Também ele discutira com os chefes de delegação, porque não queria partir. Era da opinião de que pelo menos a bandeira de Israel, com uma flor em sinal de luto, deveria ter ficado para entrar no desfile da cerimónia de encerramento. Pode haver opiniões diferentes sobre se foi ou não acertada a decisão do Comité Olímpico Internacional de não permitir às vítimas dos assassínios de Munique um minuto de silêncio na cerimónia de abertura dos Jogos de Londres [de 2012]. Concordo, no entanto, com Shaul Ladany em dizer que os Jogos devem continuar e que nunca deveremos ceder ao terror.

(*) Comboio de Kasztner: alusão ao resgate de judeus húngaros para fora do território ocupado pela Alemanha, em 1944. Após negociações em que interveio o advogado judeu-húngaro Rudolph Kasztner, dois comboios de vagões de gado transportaram mais de 1600 judeus para fora da zona ocupada pelos alemães, através da fronteira com a Suíça. A viagem iniciou-se em 30 de Junho desse ano, em Budapeste (capital da Hungria, então ocupada), e os comboios, apesar de não previsto de início, fizeram um desvio pelo campo de Bergen-Belsen, onde outros judeus puderam juntar-se aos que vinham da Hungria. Shaul Ladany, que não era originário desse país, foi um deles. A viagem durou vários meses, tendo os dois comboios chegado à Suíça em separado, um em Agosto e outro em Dezembro de 1944.

Tradução publicada com autorização da Sociedade Internacional de Historiadores Olímpicos.