Dos anos 70 à actualidade. Imagens: arquivo «O Marchador» e José Machado Eduardo. Montagem: Erica SL Dias |
No dia em que passam 50 anos sobre o momento da reimplantação da marcha atlética em Portugal, não é apenas a efeméride que se cumpre: assinala-se meio século de um processo em que uma disciplina do atletismo recuperou dinâmica, mobilizou praticantes, afirmou a qualidade dos seus agentes, ganhou notoriedade e demonstrou que o ímpeto associativo é uma mola que oferece energia criadora com vista à concretização dos objectivos da comunidade.
Em 1 de Dezembro de 1974, com a realização da prova de marcha organizada e levada a efeito no Parque do Fontelo pela Comissão Municipal de Turismo de Viseu, a especialidade renascia em Portugal, depois um período de vitalidade de cerca de 15 anos no início do século XX (de 1906 a início da década de 1920) e de outro meio século em que praticamente não existiu, à parte um conjunto de provas realizados em 1938/1939, por iniciativa de jornais nacionais e locais. Durante o período da ditadura, o país viveu fechado sobre si próprio, com limitações impostas a contactos internacionais, sujeito a condições políticas que implicaram uma guerra em África que se prolongou por 13 anos. Os interesses dos portugueses, em especial da juventude, estavam centrados em necessidades que não favoreciam a prática do desporto, de resto pouco incentivada na escola ou noutros contextos de vivência social.
Chegada a Revolução de 25 de Abril de 1974, tudo mudou. A abertura política, social e cultural proporcionada pela acção dos militares naquela madrugada libertadora trouxe consigo a tomada de consciência da necessidade de condições para proporcionar aos jovens (e a todos os outros) a oportunidade para a prática de qualquer modalidade desportiva, quer se tratasse das mais conhecidas ou das que menos estavam presentes na informação divulgada. Foi com esta mentalidade que surgiram os três primeiros grandes pólos de prática da marcha atlética nos pós-25 de Abril: a região de Viseu (com ênfase na Casa do Pessoal das Minas da Urgeiriça), o Sport Lisboa e Benfica (em Lisboa) e o eixo Santa Iria da Azóia / Póvoa de Santa Iria (nos arredores de Lisboa).
A partir daí, cresceu a quantidade de atletas dedicados à prática da marcha e aumentou o número de núcleos de praticantes, os quais, por sua vez, também se empenhavam na organização das primeiras provas. Os homens e as mulheres da marcha faziam a sua caminhada no sentido da concretização das aspirações desportivas. Não dispondo de condições desejáveis para a sua prática, tratavam de criar essas condições, com criatividade, solidariedade e a determinação com que enfrentavam os novos desafios.
A partir do nível básico de organização dentro de clubes, a marcha passou a um nível superior de integração e de intervenção, através da admissão de dirigentes e atletas da marcha em associações regionais de atletismo e, por fim, na própria Federação Portuguesa de Atletismo. Os marchadores criaram mesmo o seu clube específico, o Clube Português de Marcha Atlética (CPMA): mais do que agregar atletas e organizar a sua actividade desportiva, o CPMA apresentava-se vocacionado sobretudo para o apoio à organização de provas de marcha e de acções de formação de diferentes tipos de agentes (treinadores, dirigentes, juízes).
Foi graças a esta energia que a marcha cresceu nos primeiros anos de reimplantação. Como resultado, ao fim de dez anos, em 1984, Portugal já apresentava marchadores nos Jogos Olímpicos, através da presença brilhante de José Pinto nos 20 km e nos 50 km marcha dos Jogos de Los Angeles. Era a confirmação da qualidade da primeira grande figura internacional da marcha portuguesa, que já em 1982 tinha participado nos Campeonatos da Europa de Atletismo (Atenas, 20 km) e em 1983 também nos primeiros mundiais de atletismo (Helsínquia, 20 e 50 km) – as primeiras grandes competições internacionais com mínimos para as quais marchadores portugueses conseguiram apurar-se. Seguiu-se um período de multiplicação de atletas olímpicos (foram três em Seul-88 e cinco em Barcelona-92). Mas também dos primeiros grandes sucessos internacionais, com a sucessão de títulos e pódios em mundiais e europeus de juniores (Susana Feitor e Sofia Avoila).
Viriam depois os sucessos colectivos em taças da Europa ou do mundo de marcha, tanto no plano masculino (terceiro lugar nos 50 km da Taça da Europa de Cheboksary-2003) como no feminino (vitória na Taça do Mundo de Chihuahua-2010, entre outros pódios) ou ainda entre os juniores femininos (vitória nos 10 km da Taça da Europa de Podebrady-2021).
A par do progresso no âmbito competitivo (que pode ser exemplificado com a existência de 20 marchadores olímpicos portugueses entre 1984 e 2024), a marcha registou progressos também na capacidade organizativa, no saber dos treinadores e na competência do ajuizamento. Os grandes prémios e os campeonatos nacionais de marcha em estrada conseguiram atrair grande quantidade de participantes, por vezes mais de duzentos no conjunto das provas, sendo frequente a presença de algumas das mais destacadas figuras mundiais da especialidade (masculinos e femininos). Por essa via, o público pôde assistir a grandes espectáculos competitivos, coroados não poucas vezes com marcas de excelência, sendo o Grande Prémio Internacional de Rio Maior em Marcha Atlética uma componente regular do calendário internacional da marcha.
Por outro lado, surgiram também trabalhos académicos centrados na marcha, desenvolvidos por treinadores em processo de formação superior, constituindo um reforço da qualidade do trabalho dos treinadores portugueses de marcha atlética.
Um dos domínios em que a marcha mais investiu e onde registou maior desenvolvimento foi o do ajuizamento. Primeiro, com a realização de acções de formação de juízes de marcha por todo o país, visando combater a incipiência da capacidade de desempenho dos que, de forma corajosa e voluntariosa, aceitavam desempenhar a função mesmo não dominando os procedimentos; depois, com a criação de quadros nacionais e regionais de juízes especialistas, habilitados a actuar de forma competente em provas de marcha de qualquer nível. Este investimento na formação de juízes traduziu-se no aumento da qualidade geral dos juízes portugueses de marcha, que de forma crescente foram sendo reconhecidos também no plano internacional, com a respectiva integração nos painéis da Associação Europeia de Atletismo e da federação internacional.
Desde 1995, os juízes portugueses de marcha e oficiais técnicos portugueses (num total de dez agentes) registaram 417 participações em competições internacionais, incluindo Jogos Olímpicos, campeonatos do mundo ou da Europa de atletismo e taças do mundo ou da Europa de marcha, além de outras competições de níveis mais baixos (ou mesmo campeonatos nacionais de outros países).
Mas nem tudo neste percurso de meio século foi simpático. Apesar do grande empenho da gente da marcha e de estruturas federativas (algumas associações regionais e a própria federação) nos anos iniciais da reimplantação da marcha em Portugal, os tempos que haveriam de correr trouxeram as já referidas fases de crescimento mas também outras de negligência a que a marcha foi votada, sobretudo na acção da FPA, tantas vezes discriminatória para com a disciplina. Por consequência, muita da dinâmica que caracterizou as primeiras épocas perdeu-se, fazendo desaparecer núcleos de praticantes e provas que davam corpo ao calendário nacional.
Em 50 anos, a marcha portuguesa ressurgiu, afirmou-se, cresceu, ganhou grande expressão nacional e internacional, foi alvo de negligência, regrediu e agora espera poder voltar a crescer. Venham mais 50 anos!