quarta-feira, 9 de julho de 2014

O «caso» Lashmanova e o iceberg da dopagem

Lashmanova nos mundiais de Moscovo-2013.
Foto: Jeff Salvage
O recente caso de dopagem de que resultou a suspensão da marchadora russa Elena Lashmanova por dois anos traz de novo ao debate público o problema do «doping» enquanto forma anti-regulamentar e ilegal de participação na actividade desportiva. A onda de indignação tem sido tanto maior quanto o relevo que a atleta em causa apresenta na realidade desportiva internacional: por um lado, trata-se nada mais nada menos que da actual campeã olímpica e mundial dos 20 km marcha femininos; por outro, refere-se a uma atleta ainda jovem, de apenas 22 anos, com um início de carreira fulgurante e a prometer desempenhos futuros difíceis de igualar (pelo menos para os padrões actuais, considerando o nível dos recordes mundiais e as marcas habitualmente realizadas nas principais competições internacionais).

Mas o «caso» Lashmanova trouxe agregado outro aspecto deste problema, representado pelo facto de se tratar de mais um entre inúmeros casos de dopagem verificados com atletas de uma mesma «escola» de marchadores, a de Saransk, orientados por um treinador comum, Viktor Chyogin. A associação entre esse treinador e o nome daquela cidade da Rússia parece uma mistura explosiva, que deu já origem a que fossem expressas opiniões que até há pouco tempo se ouvia apenas em conversas particulares e que vão no sentido de penalização também do treinador - leia-se: a sua irradicação do universo desportivo.

A ideia tem por base a concepção assumida no Código Mundial Antidopagem, cujo art.º 21.2 refere os papéis e as responsabilidades do pessoal de apoio aos atletas. Ora, as equipas técnicas (treinadores e não só) fazem parte desse círculo que rodeia o atleta, facto que desencadeia a vontade de ver punidos não apenas os atletas mas todos os que à sua volta, por acção ou omissão, colaboram no recurso a substâncias ou métodos proibidos pela Agência Mundial Antidopagem.

Nos últimos anos (consideremos desde o início do século XXI), mais de trinta marchadores entraram na lista negra dos atletas suspensos por dopagem, incluindo cinco actuais ou antigos campeões olímpicos (três russos, um italiano e uma grega). Cerca de metade deles (16) são russos, mas há pelo menos outros dez países manchados. A este propósito, consulte-se a lista publicada pela AIFA com os nomes dos atletas a cumprir sanções por dopagem (ligação no final do texto). São centenas de nomes de atletas de todas as especialidades do atletismo, entre eles os dos referidos marchadores.

Neste contexto, ainda que seja justo defender o afastamento específico deste ou daquele agente envolvido em casos de «doping» (e muito se tem falado no treinador Viktor Chyogin, orientador técnico de quase todos os marchadores russos apanhados em controlos de dopagem e tido por muitos como suspeito de forte envolvimento nos casos dos seus atletas), importa que não se tente encontrar culpados convenientes, ao mesmo tempo que se deixa escapar aqueles que até agora têm conseguido passar entre os pingos da chuva.

Enquanto as acusações se centram nos casos mais notórios dos russos (mas nem por isso mais graves, dado que graves são eles todos), há por certo quem esteja a esfregar as mãos de contente por não estar no centro das atenções. Ou seja, enquanto se fala dos russos esquece-se os outros. E não faltam situações muito suspeitas e «ligações perigosas» envolvendo atletas, ex-atletas, treinadores, dirigentes, juízes, médicos, familiares...). Os casos conhecidos são, possivelmente, apenas a ponta de um iceberg que é bem capaz de chegar muito fundo.

Impõe-se uma acção séria, devidamente planeada, capaz de verificar suspeitas e de fundamentar acusações, afastando do mundo do desporto todos os agentes nocivos que possam ser detectados. A não ser que se queira que a poeira assente para depois tudo continuar na mesma.

O que menos se deseja é acções isoladas, dirigidas especificamente a uma ou duas pessoas, deixando de mãos livres aqueles que, muito provavelmente, se vão mantendo na sombra, continuando a manobrar cordelinhos e a proteger prevaricadores que, além de porem em causa a sua própria saúde, criam os mais graves atropelos à verdade desportiva.

Note-se que nos últimos dez anos tiveram lugar três edições dos Jogos Olímpicos de Verão, cada uma delas com três provas de marcha: 20 km masculinos, 20 km femininos e 50 km (masculinos). Como nessas edições nenhum atleta bisou vitórias, temos nove campeões em nove provas olímpicas de marcha de Atenas-2004, Pequim-2008 e Londres-2012. Desses nove «campeões», cinco vieram a ser suspensos por dopagem após as respectivas vitórias olímpicas: a grega Athanasia Tsoumeleka (Atenas-2004, 20 km femininos), o italiano Alex Schwazer (Pequim-2008, 50 km) e os russos Valeriy Borchin (Pequim-2008, 20 km masculinos), Sergey Kirdyapkin (Londres-2012, 50 km) e, agora, Elena Lashmanova (Londres-2012, 20 km femininos). Ou seja, mais de metade dos campeões olímpicos da marcha do século XXI são batoteiros!